terça-feira, 29 de setembro de 2009

Pulsão de Morte - A festa


Era uma manhã de outono cinzenta, não como qualquer outra, mas uma com assobiantes rajadas de vento perpassando o ambiente externo, arrancando folhas e galhos, que transformava todos aqueles que se encontravam naquela perdida sala de universidade em gatinhos listrados com olhinhos esbugalhados e completamente assustados. Ou então era um belo dia de sol como qualquer outro e a aula de psicanálise transformava tudo em algo macabro, com palavras grandes, difíceis e poucas pausas.

 Enfim, todos aqueles gatinhos listrados com olhinhos esbugalhados e completamente assustados, independentemente do clima, estavam absortos na explicação calma... lenta... paciente... divagante daquela doutora freudiana. Talvez, alguns buscavam material bruto para estudar empiricamente A interpretação dos sonhos, outros confessavam através de bilhetes as peripécias da balada da noite anterior e, apenas um , tentava se concentrar mentalmente fechando os olhos e imaginando o que aconteceria se Descartes tivesse abandonado seu modelo dual e adotasse uma cabra. Se observássemos bem o desenho da pessoa ao lado do maníaco caprino, veríamos a caricatura perfeita do estereótipo de uma psicanalista: cabelos chanel com corte reto, calça social colorida combinando com um casaquinho feito pela vovó, pernas cruzadas e um olhar de “conte-me mais sobre isso” por cima dos óculos estilo sou-intelectualóide.

 Enquanto isso, a professora (com cabelos chanel com corte reto, calça social colorida combinando com um casaquinho feito pela vovó, pernas cruzadas e um olhar de “conte-me mais sobre isso” por cima dos óculos estilo sou-intelectualóide) continuava vagarosamente a aula. O assunto ecoava na mente dos alunos, o assunto ecoava na mente dos alunos, o assunto ecoava na mente dos alunos, afinal, além da voz morosa o tema da aula em questão era pulsão de morte e compulsão à repetição, repetição, repetição.            

Enfadonhamente, ninguém entendia bulhufas do que era dito; e não pela complexidade do assunto, que colaborava o mesmo tanto que uma ameixa colabora para a cobertura da telefonia celular, mas , pela inabilidade da professora de ao menos tentar trazer algum dinamismo para a aula. Particularmente acredito que marasmo e psicanálise são tão indissolúveis, quanto fraude e Brasil, para o terror dos estudantes de psicologia, psicanalistas e brasileiros.

Assim que Descartes partiu para as núpcias com a cabra, enquanto o bode chifrudo “limpava a chaminé” com Anna O., o assunto da balada se extinguiu e a aula fez uma tentativa de entrar na mente de pelo menos dois de nossos estudantes, ou como alguns prefeririam: gatinhos listrados com olhinhos esbugalhados e completamente assustados.            

Em garranchos pequenos e erros de português se lia:

 “Acho que tenho 1 maneira + fácil de entender a porcaria pulsão de morte. imagine 1 festa, sem pessoas nem nada. Onde tá tudo limpinho e as pessoas tão felizes pq tá tudo limpinho e arrumado. Aí chega 1 penetra.... e faz bagunça. Esse mané é a vida e a festa os instintos inanimados e orgânicos q só queriam ficar na deles. A vida como é elétrica, tira as cadeiras do lugar, come as comidas, joga confete, canta, bebe, fica tonta, vomita e chama todo mundo de meu amor... Enquanto isso, a pulsão de morte fica querendo voltar ao estado mó de boa, quando a festa tava p/ começar, ms aceita as modificações, assim de boássa... Claro que registraram tudo com câmeras digitais e 1 continuísta de cinema. Assim a pulsão de morte fica repetindo as coisas, atrapalhando a bagunça da vida, q atrapalha a organização da pulsão de morte. A vida é pentelha!”

            Em letras legíveis e claras, que intercalava os garranchos, a conversa foi continuando:
           
             “Mas a festa sozinha é o quê?”
           
            “Bolas, era o nada, o estado inanimado... até chegar alguém e avacalhar tudo...”
           
            “mas se tinha nada, como que tinha gente feliz com ele? =P”
           
            “como q tinha gente infeliz?”
           
            “Mas ñ  tinha NINGUÉM!!!”
           
            “ms era o estado inanimado, e + ninguém tava infeliz! Viu q coisa + perfeita?”
           
            Descartes separou da cabra meses depois. O bode aceitou-a de volta, sem muita relutância, o que resultou em futuras escapadas da irresistível  e fogosa cabritinha. Metade da sala já havia sido transformada em caricaturas e o autor das mesmas ficou imaginando quantas ainda seriam necessárias para suportar até o fim do semestre. Alguém fez uma pergunta só para fazer circular o sangue dos braços ao levantá-lo. O primeiro da fila babou. O da balada chegou a uma conclusão tão certa quanto dois mais dois são seis. No fim, a melhor metáfora para o retorno ao tédio absoluto era, na verdade, a própria aula de psicanálise.

Um comentário:

  1. Imagino que realmente seja uma descrição verossímil de uma aula de psicanálise!!

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